A dor pode nos mudar, mas não precisa nos destruir.

Uma história sobre a luta contra a leucemia e o luto. Uma história verdadeira e que nos faz pensar sobre a finitude do ser humano e como buscamos nossa felicidade.

LUTOSAÚDE MENTAL

Cícero Menezes

1/19/20254 min read

Era um domingo quente de janeiro, em pleno verão paulista.

Aquele era o tipo de dia que começava preguiçoso, com o sol brilhando forte lá fora, mas algo dentro de mim parecia carregado de presságios. Eu estava com Marcelo, meu companheiro de quase uma década. Ainda me lembro da leveza daquele dia. Tomamos café tarde, planejamos o que faríamos para o almoço e até rimos das pequenas manias que já conhecíamos tão bem um do outro. Nada naquela manhã me preparava para a espiral de acontecimentos que estava prestes a nos atingir.

Marcelo era a personificação do vigor. Um homem que vivia intensamente, ria fácil e estava sempre disposto a experimentar o novo. Mas naquela tarde, enquanto almoçávamos juntos, ele começou a sentir algo estranho: um leve sangramento no nariz. “Calor,” ele disse, com aquele sorriso tranquilo. “Coisa do verão.” E eu, sem saber o que o destino preparava, concordei, despreocupado.

Por três dias consecutivos, o sangramento voltou, sempre na mesma intensidade, sempre na mesma despretensão. Mas, na quarta-feira, algo dentro de mim gritou mais alto. No escritório onde trabalhávamos lado a lado, ele veio até mim com a expressão um pouco abatida. “Está sangrando de novo,” disse, quase pedindo desculpas, como se aquele pequeno incômodo fosse algo que ele não queria compartilhar. Foi então que decidi: “Vamos ao hospital agora. Sem desculpas.”

Chegamos ao pronto-socorro e, enquanto esperávamos os resultados dos exames, fomos à padaria do hospital. Ele tinha uma paixão por coxinhas, dessas que fazem os olhos brilharem. Eu nunca o vi tão feliz diante de algo tão simples. Eu não sabia que aquele seria um dos nossos últimos momentos de normalidade juntos.

Quando voltei para buscá-lo, meu celular tocou. Era uma enfermeira, pedindo que eu fosse direto ao pronto-socorro. Lá, a médica me chamou para uma conversa em particular. Foi naquele instante que o chão se abriu. Suas palavras vieram como facadas: "Marcelo tem uma chance muito alta de leucemia." Fiquei sem reação. Tentei questionar, argumentar, racionalizar o impossível. Como assim? Ele estava bem. Ele era saudável. Era... invencível aos meus olhos.

Voltei para o quarto onde ele estava e o vi tão vulnerável, esperando que eu dissesse algo reconfortante. Ele perguntou: "O que aconteceu? O que ela disse?" Minha voz tremeu enquanto eu procurava palavras que não o apavorassem: “Ela acha que suas plaquetas estão baixas. Vão precisar investigar mais.”

Os dias que se seguiram foram como um pesadelo em câmera lenta.

O diagnóstico veio: leucemia. Ele começou o tratamento imediatamente. Estávamos determinados a lutar juntos, mas, como sempre, o destino parecia ter seus próprios planos.

O primeiro transplante trouxe esperança, mas não foi suficiente. Quando a notícia de que um segundo transplante seria necessário chegou, eu o vi pela primeira vez hesitar. “Estou com medo,” ele me disse, segurando minha mão como se buscasse forças. “Vai dar tudo certo,” respondi, mesmo que por dentro eu também estivesse aterrorizado.

Na manhã em que ele foi internado para o segundo transplante, nos despedimos na porta de casa. Eu quis acreditar que seria só mais uma etapa, mais um desafio que superaríamos juntos. Mas, na verdade, aquele seria o último momento em que o veria fora do hospital.

Marcelo foi levado à UTI após complicações graves. A bactéria que contraiu tornou-se implacável. Eu lutava para ter mais acesso a ele, mas a família dele, que nunca aceitou nosso relacionamento, me mantinha à distância. A última vez que o vi foi de longe, no corredor do hospital, quando entreguei roupas. Ainda posso sentir o peso daquela distância.

Na quinta-feira, às 9h20 da manhã, ele se foi. Eu estava no hospital, esperando para vê-lo, quando recebi a notícia. “Você vai precisar ser forte,” disse o médico. As palavras pareceram ecoar num vazio. Fui levado ao necrotério, onde, pela última vez, toquei nele. “Vai em paz, meu amor,” sussurrei. “Se isso é o melhor para você, eu te deixo ir. Mas eu nunca vou esquecer.”

Marcelo foi cremado poucos dias depois, em uma cerimônia que me excluiu completamente. Descobri que suas cinzas foram jogadas ao mar sem sequer me chamarem. A dor disso foi como uma nova ferida aberta. Era como se eu tivesse perdido não só a pessoa que mais amei, mas também o direito de compartilhar meu luto.

Foi ali que percebi que precisava transformar toda aquela dor em algo que me levasse adiante. Decidi estudar psicanálise, para entender melhor a dor humana e, quem sabe, ajudar outros a lidar com perdas como a minha.

A morte dele me ensinou algo que nunca imaginei ser capaz de aprender: a vida não para para nos esperar.

O luto não tem prazo, não tem fim, mas ele muda de forma. Com o tempo, a dor aguda cede lugar a uma saudade constante, mas mais gentil.

Hoje, ajudo pessoas a enfrentarem seus próprios abismos emocionais. Marcelo me mostrou, em vida e em morte, o valor de viver com intensidade e de lutar pelo que importa. Ele me transformou, e essa transformação é a maior homenagem que eu poderia prestar a ele.

Se há algo que desejo que você leve desta história, é isso: a dor pode nos mudar, mas não precisa nos destruir. Podemos encontrar um caminho de volta, mesmo que nunca sejamos os mesmos. E talvez isso seja o mais bonito na vida: a capacidade de renascer, mesmo das nossas maiores perdas.